A senhora gentil horrivelmente colorida

Postado no dia: 14 de July de 2010 por Ãlvaro Perazzoli em Crônicas do Cotidiano

Por: Ãlvaro Perazzoli

Terça-feira de chuva em mês de inverno, típico dia para todos os problemas respiratórios atacarem de uma vez e ainda por cima ser presenteado com um resfriado. Saí de casa em direção a um banco para sacar algumas notas e resolver algumas burocracias financeiras.

O olhar de fúria do casal de seguranças da agência revelava que haviam me reconhecido.

Há exatas 24 horas, o bloqueio manual da porta giratória que barra suspeitos através de um controle remoto travou por mais de quatro vezes consecutivas. Isso me enfureceu e os obriguei a chamar a gerente antes que eu parasse uma viatura e alegasse preconceito racial e social, já que pessoas melhor vestidas e de aparência caucasiana não estavam sendo bloqueadas.

Nessa ocasião não ousaram me barrar, mas a situação era com a gerente. Essa quem deveria imediatamente me reconhecer e me dar um simples aparelho eletrônico (para efetuar pagamentos on line sem ver a cara daqueles pobres infelizes que guardavam a entrada de uma empresa de cor azul e laranja), não o fez.

Após algumas dezenas de minutos sentado, desisti de esperar e resolvi encarar a chuva e fui em direção a uma parada de ônibus – você paga um absurdo para ter o direito de dirigir um veículo neste país e na hora que mais precisa, os malditos automóveis sempre tendem a estar com problemas mecânicos.

Minha direção eram as ruas Santa Efigênia e 7 de abril, ambas no centro de São Paulo, ou seja, longe pra cacete da minha casa. A primeira é um paraíso de peças para computadores e eletrônicos ilegais, a segunda é uma referência nacional de equipamentos fotográficos profissionais analógicos e digitais.

O ônibus demorou alguns minutos, Term. Correio, dizia o letreiro. Fiz o sinal e adentrei o veículo.

Haviam cerca de seis passageiros após a catraca, mas aparentava ter bem mais. Eram aqueles carros mais novos que dizem serem mais espaçosos, quando na verdade possuem o mesmo tamanho só que menos bancos, isso para alocar mais passageiros em pé e dar mais lucro para algum fétido empresário de transportes coletivos.

Na minha frente estava uma senhora com roupas de lã horrivelmente coloridas dos pés a cabeça. Aparentava seus 70 anos e pedia confusamente para que eu passasse a catraca na sua frente. Não entendi o gesto, ela havia usado o cartão antes e não girou a roleta.

Mas ela insistia, “Passe por favorâ€.

Confuso saquei a carteira e ameacei pagar. “Guarde a carteiraâ€, disse ela. Olhei desconfiado para o cobrador que mais parecia um bulldog velho. Este não moveu um músculo e me olhava por cima dos ombros, na verdade nem os olhos ele mexeu, eu é que estava em seu campo de visão.

“Qual será o objetivo desta mulher?â€. “O que será que ela quer em trocaâ€. “Essa maldita serenidade em seu rosto vai me revelar uma velha perversa que passará o restante da viagem me falando de seus reumatismos e da sua aproximação com o nosso senhor?â€. “Talvez ela seja uma evangélica que tentará me convencer em aceitar Jesus e fazer com que eu me arrependa de todos os meus pecados?â€.

Minha conclusão foi que após eu passar pela roleta ela pediria que eu lhe desse o valor em dinheiro referente a uma passagem para ela comprar remédios para seus netos moribundos.

Continuava olhando para o bulldog e este nada falou. Parecia até que ele conhecia aquela senhora e compactuava há tempos com a ação coativa aos passageiros que dão dinheiro a esta velha mulher que usa roupas com combinações de cores grotescas.

Ultrapassei a catraca e imediatamente fechei os olhos. “Diabosâ€, gritei sem emitir som. Já era tarde demais para evitar aquela situação e estava aguardando a abordagem, desejava apenas que fosse criativa e rápida.

Ela sorriu. “Será que ela escutou o que pensei?â€, questionei introspectivamente.

“A senhora pagou a minha passagemâ€, disse confuso e ainda desconfiado.

“Sim, meu cartão é para acompanhantes e estou passando vocêâ€, respondeu ela serenamente e com um sorriso no rosto.

Estava diante de um ato de gentileza extrema, imediatamente fiquei envergonhado dos meus pensamentos. Esquecia sua cara sofrida e seu modo esdrúxulo de combinar peças de roupa de cores distintas.

A repulsa tornou-se admiração e a desconfiança vergonha.

“Obrigadoâ€, respondi.

“Por nadaâ€, conclui ela o rápido diálogo tentando compactuar comigo um sorriso que custei a entender que era sarcástico e se direcionava a um possível deboche para com o guardião da roleta.

“Será que ela tem consciência e ri desta pequena subversão a uma brecha do sistema?â€, pensei comigo.

Já me esquecia dos transtornos no banco, da minha rinite alérgica, da chuva e o conseqüente trânsito e também das dívidas de um automóvel que não posso usar e me obriga a encarar cobradores com cara de bulldog.

Confesso que tal gesto me encanta em uma sociedade como esta, onde a desconfiança e os pensamentos mais preconceituosos e absurdos são o reflexo de todo um comportamento social urbano de uma cidade estúpida que se priva da gentileza e da solidariedade para com o próximo.

Durante a viagem refleti sobre os seres que arriscam e gastam fortunas para terem alguns míseros minutos de prazer, paz e êxtase. Será que eles entenderiam que essa busca pode ser conseguida através de um conjunto de coisas simples como atos de gentileza e solidariedade?

Talvez esses seres não estejam buscando, mas sim fugindo da realidade, já que convivem diariamente com seus monstros internos que nada mais são do que reflexos de suas personalidades individualistas, rudes e terrivelmente gananciosas.

Mas a tranqüilidade se foi e comecei a pensar na consciência, no que viria em troca neste mundo do “que se faz é o que se paga†e no “olho por olho e dente por denteâ€.

“Será que essa senhora de vestes enfadonhas é parte de um plano divino para que eu seja o porta voz de toda a humanidade sobre a importância da gentileza humana?â€.

Se for isso, há uma grande possibilidade desse ônibus bater em um caminhão tanque lotado de combustível e diante de uma pré-explosão que destrua tudo num raio de 50 metros eu tenha alguns segundos para decidir se corro e convivo eternamente com a culpa de não retribuir uma gentileza ou arrisco minha vida para salvar uma mulher de corpo velho envolto em roupas de lã com cores medonhamente sortidas que há pouco pagou minha passagem sem querer nada em troca.

Pouco tempo depois ela deu sinal para descer. Imediatamente procurei atordoado a porra do caminhão tanque, mas felizmente não havia nenhum por perto. Ela desceu e respirei um pouco aliviado. Ainda olhei para ver se ela acenava, mas não olhou em minha direção e seguiu o seu caminho…

“Mas espere!? E se esse ato da velha gentil terrivelmente colorida for uma forma de me obrigar a passar a gentileza adiante?â€.

“Isso significa que essa porra ainda pode explodir!â€.

Imagem meramente ilustrativa
Fonte da imagem:
http://madisonthree.blogspot.com/

  1. Flavio Giovanni says:

    Mano.

    Infelizmente nós perdemos aquele sentido de amizade sem compromisso, de confiança sem conhecimento e de reciprocidade sem cobrança. O mundo está vivendo um novo momento (nojento mas está) em que as pessoas se tornaram extremamente individuais e particulares em seus pensamentos.

    Este tipo de atitude reflete que ainda temos esperança, por menor que ela seja. O próximo ainda é próximo em algumas pequenas atitudes de confiança e solidariedade. Este é o mundo em que deveríamos viver.

    Um grande abraço.

    FG

  2. Rafael De la Torre Oliveira says:

    Gostei muito mesmo!!! Você está descrevendo com riqueza o dia a dia, coisa que pode passar desapercebido(alienado), mas, com suas palavras e pensamentos envoltos no texto, tu demonstra como que um dia de chuva, apático, pacato e deprê, pode se tornar muito rico em uma simples experiência de pegar um ônibus e sofrer uma gentileza.(Sim, sofrer, parece que quando alguém é gentil a coisa é tão alienigena que nós sofremos.)

    O mais interessante foi ler os seus pensamentos durante uma simples passagem de catraca, que deve ter durado o quê? 2 minutos? No texto você faz isso, esse pequeno ato que pode passar desapercebido, encher ele de questões, dúvidas e angustias, sem camuflar nada. Tarefa para poucos, não é qualquer um que não se permite alienar.

    Provavelmente, o bilhete de acompanhante ela conseguiu pois tem algum tipo de deficiencia, ano passado trabalhei nos postos de Sptrans, e o idosos tem direito ao bilhete do Idoso com as mulheres tendo ele a partir dos 60 anos e os homens 65. Mas, só o bilhete de idosos não da direito a acompanhante, eles tem de ir e tentar pegar um laudo médico e passar por uma puta burocracia exaustiva e desinteressada, afinal, como você diz: ” cara se preocupa com o lucro”.
    Na sapiencia dela, ela estava dando o troco merecido. E o cobrador nada pode fazer, alias, muitos são os casos de descaso de idosos que usam o bilhete adquirido ou só o RG.

    A leitura é agradável e dinamica, mas o foco do texto foram os seus pensamentos que ficaram bombando a todo o instante. Vale sempre a pena registrar o cotidiano e essas experiências, assim, ficamos menos alienados de nós mesmos.

    ”Durante a viagem refleti sobre os seres que arriscam e gastam fortunas para terem alguns míseros minutos de prazer, paz e êxtase. Será que eles entenderiam que essa busca pode ser conseguida através de um conjunto de coisas simples como atos de gentileza e solidariedade?”

    Bela sintese. Só tenho um ponto de crítica. O texto está muito bom e muito interativo, mas parece que para um certo tipo de público que compactua mais menos dessa visão. O legal é escrever para quem não é da nossa ”Igreja”, quem é da nossa ”Igreja” já é, tem de levar a mensagem para dar sentido em outros. E também, aparentemente, escreve como se estivesse a par dos acontecimentos sociais que permiam a todos nós. Pegando aqui a frase logo depois da que tem acima: ”Talvez esses seres não estejam buscando, mas sim fugindo da realidade, já que convivem diariamente com seus monstros internos que nada mais são do que reflexos de suas personalidades individualistas, rudes e terrivelmente gananciosas.”

    Todos nós temos uma fuga da realidade. Tu da a entender que você está a par disso e escreve como se essas questões não permeiam você também. ” Esses seres’….” reflexos de suas”. Entende? O processo de alienação já está aqui também, pois parece que fala como se estivesse acima, abaixo, do lado ou do outro, mas não no meio desse bojo todo que você escreve. Somos um coletivo. Ao menos é assim que compreendo o cotidiano.

    Bem, é isso. Essa foi a única observação que tenho a fazer, mas, é uma perspectiva minha, então ela é totalmente descartável, pois não tenho base em conhecimento de texto sobre jornalismo e tals e tals

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