Texto e foto por Ãlvaro Perazzoli

Capítulo I
As mentiras vermelhas confabulam com as lágrimas do medo
[1]
A brisa gélida de cor azul saúda o homem magro de capote preto longo e chapéu cinzento que caminha assombrando-se nos passeios estreitos da madrugada vazia.

Pele branca rugosa, mãos no bolso e cigarro apressado, foge de seu caminho em passos largos com sapatos que sentenciam o silêncio.

Recorda-se da velha Inglaterra, culpa-se pelas crianças que dormem embaladas na mortalha da lua que canta profecias blakianas.

Há uma garrafa com líquido dourado presa no bolso de sua camisa. Ela acompanha singularmente cada pulso de seu músculo vital.

Dos cigarros a volatilidade dos tragos, da bebida a volúpia do delírio.

Gosta do circo. Apaixonara-se por uma bailarina que jazia tristeza em cada passo falso de sua sapatilha velha e imunda.

Vermelho é o seu semblante, vermelho é o seu amor, vermelho é sua culpa, vermelha são as manchas coaguladas na lâmina de seu punhal.

Um quadrúpede de pelo branco que guarda a saída maldita cruza seus passos e sorri desgraça. O latido gentil é como uma denúncia da presença mal vinda.

Há estrelas na boca do céu. O chapéu largo o protege dos astros intrusos que soluçam o brilho da angústia em cada esquina que dá trégua ao olhar.

Há sexo em seu cheiro. Não há mais danças em seu amanhã.

Do circo, o horror. Dos aplausos, a degeneração. Figuras anômalas invadiram o palco. Nunca houve arte, cada bilhete de entrada tinha cheiro de sangue.

Uma dançarina decapitada é só mais um elemento na composição das aberrações que suicidam a poesia e folclorizam a miséria da morbidez humana.

Em seus tímpanos ainda ecoam os gritos, mas o que o incomoda são os aplausos e a maldita exibição doentia dos dentes.

Não há alegria em sua sombra, apenas restos pálidos de maquiagem na sua lembrança. Cansara-se de alegorizar auto-punição em sua face. Caminha e obstina-se.

Não respirava mais dentro de um clown, seu personagem frio renega agora o nascer da maior estrela para desaquecer o recente banquete da vingança.

A noite começara fugir em direção oposta quando uma figura cadavérica esgueirava-se a sua direita na penumbra de cortiços desarmoniosos.

Pararam. Fósforos estão em suas mãos, uma carteira de cigarros revela-se no bolso oposto ao que repousa o líquido entorpecente.

Uma claridade tempestuosa rasga as trevas e por alguns miseráveis segundos o dourado vivo invade a face do homem. O chapéu é como um sutil rebatedor da chama intrusa.

A luz celestial revelara a esquerda uma velha placa caída na soleira de um cortiço. “Close your eyes, close you heart, close your soul, open your mindâ€[2].

Retoma os passos, toa agora em um ritmo vagaroso e ruma em direção a criatura que segue sempre a sua direita em direção ao grande lago.

Não se aproximam, não se afastam, seguem morosamente como se confabulassem uma silenciosa conversa ouvida apenas pelos mortos.

A sombria voz feminina em uma ópera longínqua sussurra blasfêmias. A sonoridade ganha vaidade na medida que os seres se avizinham de uma velha casa de barcos.

Um cômodo lamenta a solidão e queixa-se do abandono. Tapumes horrivelmente coloridos sobrepõem-se em madeiras violentadas por cupins.

A criatura a frente é um velho barqueiro. Cego de um olho, reside no mundo da profanação e sobrevive da atravessia dos homens malditos na calada da noite.

Abriu a porta do barracão sem olhar para trás. Desceu para desatar uma amarra que impedia a fuga de um velho bote a remo enegrecido pelo tempo.

Quando todos os ratos ganharam a liberdade o cômodo bastardo ficou vazio. Roupas velhas disputavam espaço com louças sujas, jornais antigos e um nauseante odor.

O lugar ficava solto na parte mais esquecida da cidade. O homem decidiu não entrar, mas o retrato de uma jovem e bela mulher sobreposto em um altar o convidou.

Uma toalha que um dia fora limpa era usada para abrigar a imagem de Beatrice. No caminho sagrado, o chão denunciava a delinqüência do ópio.

Pele pálida, dedos longos e unhas delicadamente pintadas de negro. Rosto suave com olhos profundos e cansados eram recobertos por cabelos que insistiam em se cachearem.

Seria possível haver tamanha beleza em uma flor cultivada com a água do sétimo lago das trevas?

Se o sol era a obra prima mor dos deuses, as relvas capilares de Beatrice eram a contestação de toda a criação.

Se o azul celeste era a dádiva cristã, os lábios rubros desta mulher eram a perdição da vinciana.

Sentimentalmente violentado e assombrado com o futuro, seguiu em direção ao barco de apenas um remo que o aguardava.

Em outros tempos precisaria de um casal de moedas. Poupara o barqueiro da coleta pútrida do níquel no sótão de sua língua decomposta.

O pagamento fora feito em mãos no que restava da sua semi-vida. E o homem de nome agourento escolheu a margem das trevas para ser sua eternidade.

O lago é a represa do silêncio e a condenação da luz. Neste horizonte que a lua reina o sol é um mero súdito errante que caminha curvado e nunca ousa se levantar.

Neste lado só o barqueiro retorna e não há mais razão. Os que se arrependem e tentam voltar alimentam as águas que são atiçadas pelo medo, angústia e incerteza.

Antes de partir, o último olhar, a última lágrima, o último pensar e o último resto de alegria em um sorriso sarcástico que preenche toda a escuridão enquanto dura.

Acomoda-se na proa e senta-se de frente para o barqueiro. Olha para o semblante velho e abutrico do sábio das tormentas que meio humano e meio imortal começa a remar.

Aproxima a garrafa ao seu rosto e a mira, gira-a em círculos enquanto observa a velha terra se afastar e a criatura totalmente isenta de sentimentos remar mecanicamente.

Sabe que em instantes desbravará o grande lago das lágrimas e cruzará por 13 luas a fronteira da percepção e o limiar da consciência.

Por trás dos cortiços e no topo de uma grande colina uma mancha amarela inconsistente aumenta sua forma. Tochas, enxadas e espingardas são carregadas por muitos homens.


[1] O texto As mentiras vermelhas confabulam com as lágrimas do medo é um fragmento da memória não vivida, é um recorte bruto da mente sem um propósito propriamente dito.

Não há uma idéia concreta de se criar um conto, um livro ou qualquer outra coisa. São imagens que se mantém presas e pedem para serem libertas.

O primeiro texto tem vida própria, não é conduzido pelo autor, na verdade a criação conduz o criador.  Como a contestação de William Blake sobre a deturpação humana com o conceito de Deus.

Não há a proposta de agradar o leitor, pelo contrário, as palavras se maldizem para causar o desconforto e trabalhar a morbidez humana. As pessoas não se sentem bem em ver um corpo mutilado diante delas, mas a curiosidade e a necessidade de olhar são maiores do que o próprio bem estar.

Não há rimas e nem uma métrica pré-definida, o único cuidado é que o número de linhas seja sempre dois (no corpo 12 e fonte Times), que referem-se ao ser com seu eu (a consciência) e um auto retrato de si mesmo em 2D como se fosse uma fotografia (primeiro plano, o eu, e no segundo plano o universo do eu).

Em duas passagens o texto tem apenas uma linha, simboliza a perda de um desses elementos (a consciência) no quinto parágrafo e a razão no décimo.

Não foram utilizadas nenhum tipo de substâncias alucinógenas neste primeiro momento, mas seu uso poderá ser feito.

Por fim, este trabalho não foi criado ou produzido, mas sim concebido como se fosse um vômito. Elemento que precisa sair e não há como escolher a forma e quando, ele apenas sai.


[2]
Feche seus olhos, feche seu coração, feche sua alma, abra sua mente!

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