Texto e foto por Ãlvaro Perazzoli

Ghost Bike do Viaduto 31 de Março em São Paulo, SPNa quinta-feira 4 de agosto um Francisco deixou de ser pai e virou manchete, Jander pedalou por sua última vez e o Martins nunca mais irá trabalhar. Francisco Jander Martins de empresa alguma era presidente ou diretor, mas assim como o empresário Antônio Bertolucci, foi morto por um ônibus enquanto pedalava.

Talvez as emissoras de TV não concordem com uma grande repercussão por ser a vida de um ambulante migrante do nordeste, mas os cicloativistas que saíram às ruas no dia seguinte ao acidente acreditam que a vida de qualquer um tem o mesmo valor. Este não será mais um simples Chico.

Fria, imóvel e pálida, a ghost bike incomoda porque tem cheiro de morte. Em um mórbido e silencioso cortejo que atravessou o coração da cidade de São Paulo, dezenas de Alines, Andrés e Reinaldos conduziram uma bicicleta pintada de branco para simbolizar o desejo de não terem o mesmo destino dos Franciscos, dos Bertoluccis e das Márcias.

E atravessou a rua com seu passo tímido
“Por mais que os ciclistas e pedestres estejam errados, os motoristas devem levar em conta que ali há uma vida e que são os únicos que podem salvá-lasâ€, fala André Pasqualini, cicloativista do Instituto CicloBR.

Pasqualini diz que é necessário saber o que aconteceu para entender que tipo de solução precisa ser adotada para que haja mais segurança aos ciclistas nesta via. “Viadutos e pontes são problemas da cidade inteira, pois são pontos conflituosos e sem alternativaâ€, concluí.

O Instituto CicloBR tem uma comissão de advogados voluntários que auxiliará a família sem custo algum.

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Os ativistas não se intimidaram com as autoridades presentes. A sinalização “pirata†pintada nas ruas foi feita sob os olhos dos oficiais da Companhia de Engenharia e Tráfego, que nada fizeram.

Um agente da CET, que se identificou apenas como Ãlvaro, estava dividido entre seu uniforme e a sua razão. No depoimento ele diz que todo mundo tem direito à vida e ela merece ser cuidada. “As pessoas que estão ‘pagando’ por esta manifestação nada têm haver com isso. Tudo que é feito fora da sinalização oficial é proibidoâ€.

Quando questionado sobre o porquê um grupo de ciclistas deve sinalizar por conta própria uma via, o agente responde que os ativistas estão fazendo isso para tentar chegar em uma realidade que dificilmente conseguirão.

“Nosso trânsito é caótico e nossas ruas não são preparadas para bicicletas. Nós não temos lugar nem para pedestres, que dirá para ciclistasâ€, diz Ãlvaro tentando ser amigável, mas demonstrando ser incrédulo.

Amou daquela vez como se fosse a última
Como se fosse um aviso, Taís Maria, enteada de Francisco, conta que ele visitou o casal de filhos que mora no interior no final de semana e no dia de sua morte fez um caminho que não costumava fazer.

O terceiro filho estava na manifestação. Os seus quatro anos conheceram a dor, seus olhos confusos não sabiam se choravam ou se gritavam. Com um silêncio tempestuoso, segurou um pincel e pintou de branco sereno o cinza infinito manchado pelo amor vermelho de seu pai.

Com seus olhos embotados de cimento e lágrima ajudou os ativistas a pintarem na via a mensagem de alerta aos motoristas: “Devagar Vidasâ€.

As faixas e o megafone diziam que naquele lugar morreu um ciclista, mas nenhum grito ou cartaz era tão alto e profundo como aquela criança que olhava para o vazio e pensava em seu pequeno mundo: “aqui morreu meu paiâ€.

E flutou no ar como se fosse um pássaro
Ele tinha carro mais preferia a bicicleta. Morreu em frente a um pátio da Prefeitura de São Paulo, onde nenhum trabalhador disse ter visto o acidente.

E a sexta ghost bike da cidade foi colocada em uma sexta-feira em homenagem a Francisco Jander Martins que morreu em frente à Praça Francisco Sá Carneiro.

Ao invés de uma cruz, a cidade das máquinas fantasmas, que têm mais direitos que os humanos, ganhou uma bicicleta branca, pois o pecado desse Chico foi preferir a liberdade e sua penitência foi perder a vida no Glicério.

Ao invés de um sepultamento, o corpo branco e frágil suspenso em um dos viadutos mais movimentados da cidade representa a ascensão de talvez uma paz derradeira que enfim vai nos redimir.

Que Deus lhe pague por mais esta vida.

Título e Intertítulos: Fragmentos do poema e música “Construçãoâ€, de Chico Buarque de Holanda

Ensaio de fotos completo: https://picasaweb.google.com/UrbanRidersBrasil/

  1. Márcio Campos says:

    Uma cidade que se espanta não especialmente com o que acontece, mas muito mais a quem acontece.

    O Francisco não ambulante, e “ambulantes morrem atropelados pedalando bicicletas”, o que há de espanto nisso ? Nenhum, não esperem repercussão sentida de fato. Me diz quanto você ganha por hora e te digo qual o seu “valor” na sociedade.

    E talvez quando houver tantas bicicletas brancas em tantos postes a ponto de constranger turistas curiosos em saber “que arte é aquela ?”, quem sabe então os agentes da CET tenham resposta mais sinceramente sentida e visceral, mais indignada, mais próxima das vozes dos familiares dos Chicos.

    abraço, sob lamento.

    Márcio Campos

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